04 fevereiro 2008

Silêncio forçado!

Se a Constituição Federal, em seu artigo 5º Insisos VI e VIII, garante a todo cidadão brasileiro a liberdade de consciência e o livre exercício dos cultos religiosos, ao que parece a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), empresa responsável pelo transporte ferroviário em São Paulo e os evangélicos pregadores que, diariamente, usam sua malha ferroviária, parecem que não estão falando a mesma língua ou respeitando o mesmo código. Nos últimos meses, a exemplo do que já acontece com os vendedores ambulantes, a empresa também tem feito uma marcação cerrada contra os pregadores, que se julgam perseguidos e humilhados ao serem retirados das composições. Com isso, uma das mais conhecidas e tradicionais formas de evangelização, pelo menos na capital paulista, parece estar com os dias contados.


O estopim de toda essa discussão aconteceu na estação Engenheiro Goulart, Zona Leste da cidade, onde três usuários – José Airton da Silva Santos, Agostinho Ferreira da Silva e Hilda Macedo de Oliveira, todos citados na ocorrência interna Nº 10904/2007 emitida pela empresa – foram obrigados a desembarcar, por estarem fazendo pregação religiosa. Em seu estatuto (NG 005), a CPTM esclarece que qualquer atividade que cause transtorno aos usuários, nas quais está incluída a pregação religiosa, é proibida. E argumenta ainda que tal decisão é fundamentada no Decreto Federal Nº 1832 de 04/03/96, que aprovou o Regulamento dos Transportes Ferroviários no país. “Antes da adoção de medidas regulamentares à pregação religiosa no interior dos trens e estações, a CPTM visitou várias igrejas evangélicas para informar sobre essa legislação e esclarecer dúvidas”, garante, ainda, sua assessoria de imprensa.


O evangelista Adeildo Francisco de Lima trabalha como segurança numa loja de artigos evangélicos em São Paulo e, durante o trajeto de casa para o emprego e vice-versa, ele aproveita o tempo para suas pregações, consciente de que está salvando muitas almas. Ele afirma que, por diversas vezes, foi vítima de represália por parte dos fiscais das estações: “Já levei muita pancada, cusparada, e tive minha Bíblia rasgada”, desabafa. E mesmo que não agrade à maioria dos passageiros com seus sermões e discursos inflamados, ele persiste com seu trabalho que considera o cumprimento de uma determinação de Deus. “Os pagodeiros se reúnem na Luz e ninguém fala nada. Tocar pagode, jogar truco, dizer palavrão, tudo isso pode, agora é só começar a falar de Deus que alguém já manda calar a boca”, compara. No último dia 2 de dezembro, domingo, a CPTM destinou os dois últimos carros da linha Jurubatuba/Osasco para um show de pagode, com diversos músicos, compositores e cantores, em comemoração ao Dia Nacional do Samba, com o objetivo difundir o gênero.


“Houve vezes em que, simplesmente por estar falando sobre a Bíblia no vagão, passei o dia todo em um cômodo minúsculo, com três ou quatro policiais que me intimidavam com um interrogatório digno de ser aplicado a um criminoso”, relembra Marcelo Silva, pastor responsável pela Cruzada Evangelística Interdenominacional nos Trens das Boas Novas, movimento responsável pela divulgação do Evangelho nos vagões da CPTM. “Procuramos não ser inconvenientes e nos conduzimos de forma organizada e equilibrada”, garante.


Diálogo – O líder do PSDB na Câmara dos Vereadores de São Paulo, Carlos Bezerra Júnior, reuniu-se em novembro com representantes da presidência da CPTM para discutir o problema. “Impedir iniciativas como essa é antidemocrático; não se pode cercear nem tratar com brutalidade cidadãos que estão professando sua fé de forma pacífica”, ressalta o vereador que, imediatamente após a reunião, encaminhou documento à CPTM solicitando providências no sentido de garantir que os evangélicos não sejam, novamente, vítimas de represálias. E uma das alternativas sugeridas seria a formação de um grupo de líderes e representantes cristãos para facilitar o diálogo com a empresa. “A ação do vereador foi muito importante; nunca fomos recebidos com tanta atenção. Essa é uma necessidade antiga e, finalmente, agora parece estar sendo atendida”, opina Denise Pereira, missionária da Cruzada.


Apesar da proibição dos cultos, os evangélicos expulsos dos trens da CPTM contam com a solidariedade de diversas pessoas, crentes ou não, como o pastor Renê que, num e-mail questiona: “Tudo isso está acontecendo na Zona Leste de São Paulo, mas será que o Brasil está se tornando uma China comunista com tanta perseguição?”.


Há mais de dois anos, a evangélica Maria de Lurdes de Oliveira, 38 anos, faz uma verdadeira maratona para ir, diariamente, de sua casa no bairro de Itaim Paulista a Pinheiros, onde trabalha como empregada doméstica. E nesse período, ela afirma ter presenciado muitas ocorrências no interior dos trens, desde pequenos furtos até discussões violentas. “Já vi também os guardas tomarem mercadoria dos ambulantes e bíblias dos evangélicos”, comenta. Para mim, fazer qualquer coisa que vá contra a Palavra de Deus é pecado, além de imoral”, acrescenta.


Mas se nem mesmo Jesus agradou a todos, não seriam os pregadores que iriam conquistar essa proeza. “Conheço muitos evangélicos que respeito, como os meus vizinhos. Mas, todos os dias, voltando do trabalho, assisto à pregação de uma mulher no trem. Ela só fica gritando: ‘Louva a Deus Cristo’ e ‘Louva a Deus Senhor’. Acho uma falta de respeito com os passageiros que não estão dispostos a ouvir. Se eu quisesse um sermão evangélico, iria para uma igreja. Essas pessoas acreditam, piamente, que se você não vai ao templo é porque tem o coração fechado”, comenta um dos passageiros, que pediu para que seu nome não fosse revelado.


Quadro: Vagão dos evangélicos


Uma situação que tem se tornado comum nos trens das grandes cidades, não somente brasileiras como também no exterior, é o agrupamento de pessoas com as mesmas afinidades ou características num mesmo local. Até mesmo a Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô) já estuda a possibilidade de destinar um dos vagões somente para gestantes. Entretanto, na maioria das vezes, o agrupamento corre por conta dos próprios usuários sem qualquer interferência das empresas. Na CPTM não é diferente, e uma das composições da linha Brás/Calmon Viana, que está entre as mais movimentas da Zona Leste, tornou-se uma espécie de ponto de encontro de evangélicos, e os cultos são comuns a qualquer hora do dia. “Não é sempre que dá certo, mas às vezes eu entro no vagão dos evangélicos. É como se estivesse orando na minha igreja, e até a viagem passa mais depressa”, comenta Maria de Lurdes. Face ao imbróglio causado entre os pregadores e a CPTM nos últimos meses, não é somente um dos mais tradicionais métodos de evangelização que corre o risco de acabar; a viagem do chamado “vagão dos evangélicos” também pode também estar chegando ao fim. Mas, para deixar os evangélicos um pouco mais tranqüilos, a CPTM argumenta: “A empresa não pode cercear o direito de ir e vir das pessoas, portanto não proíbe e nem proibirá que os evangélicos se reúnam para viajarem juntos. Qualquer cidadão tem o direito de viajar no vagão que desejar, em grupos ou sozinhas”.

José Donizetti Morbidelli