29 novembro 2007

O Holocausto do século 16

Com o advento do Cristianismo, o mundo – mais precisamente, o velho continente europeu – passou por muitas crises de ordem política e social, mas nada se compara ao conflito protagonizado por católicos e protestantes na França, no século 16, em decorrência de divergências entre a nobreza, o clero e a burguesia, agravadas pelo crescimento das correntes protestantes. Seguidores remanescentes de Martinho Lutero (1483-1546), que para contestar os abusos eclesiásticos fixou suas idéias de renovação na porta de uma igreja na Alemanha, iniciando assim a Reforma protestante; e de João Calvino (1509-1564), que fundou a Igreja Reformada e inseriu uma nova maneira de pensar a relação de Deus com a humanidade, foram os personagens de uma revolução religiosa que abalou as estruturas da Igreja Católica. Apesar de divergir do luteranismo em alguns aspectos, o calvinismo teve grande influência para o fortalecimento do pensamento reformista.

Antes da Reforma protestante, o catolicismo – imposto pela força coercitiva – era a religião oficial da Europa. E como autoridade máxima da Igreja Católica, as decisões do papa tinham tanto valor quanto as Escrituras Sagradas. Contudo, uma série de práticas que não condiziam com a atitude dos chamados “representantes de Deus”, como a riqueza material do alto clero, o uso indevido do dinheiro das ofertas e a prática da simonia – comércio de materiais sagrados e venda de cargos eclesiásticos – estava levando o povo à miséria e revoltando as camadas mais baixas da população. Esse descontentamento foi um dos motivos do surgimento de pensamentos reformistas baseados, principalmente, na doutrina de salvação somente pela fé e não pelas práticas cristãs. Por sua vez, o catolicismo ensinava que para alcançar a salvação era necessária a fé e a realização de boas obras estabelecidas pela igreja. Além do mais, os reformistas também julgavam inúteis o trabalho exercido pelos mediadores entre Deus e os fiéis.

Enock da Silva Pessoa, professor do departamento de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Acre, destaca a importância da ação promovida pelos reformistas: “Um grande número de intelectuais defende a Reforma protestante do século 16 como um marco histórico relevante na luta pelas liberdades democráticas, individuais e coletivas, e o luteranismo alcançou os objetivos de libertação social, política e religiosa, diminuindo a dominação política da Igreja sobre o Estado”, aponta.

Abusos – Os abusos do clero descontentavam também o rei da Inglaterra, Henrique VIII, que rompeu definitivamente as relações com o papa Clemente VII e promoveu a Reforma protestante em seu país. Assim, surgiu a Igreja Anglicana, da qual o monarca tornou-se chefe supremo, exigindo obediência dos súditos sob a pena de morte. Ainda, em solo inglês, fincaram-se os alicerces da Igreja Presbiteriana, também em decorrência de questões político-sociais.

Diante desse quadro, a Igreja Católica viu-se obrigada a tomar providências para manter a ordem e restabelecer seu poder nos principais centros europeus. Se a Reforma teve maior adesão em países com a Alemanha e a Inglaterra, na França – onde o absolutismo era mais radical – a entrada dos reformistas não foi nem um pouco pacífica, o que agravou ainda mais a crise entre as oposições religiosas. Em decorrência desse conflito, surgiram dois partidos políticos, cada um com interesses próprios: do lado dos católicos, o Papista; e, em favor dos protestantes, o Huguenote, expressão depreciativa atribuída pelos católicos franceses. Seguidores de João Calvino – um segmento formado por artesãos, comerciantes e nobres –, eles viviam no oeste e sudoeste francês sob constante ameaça, empenhados em disputas religiosas que se alastraram por várias cidades e culminou na madrugada de 24 de agosto de 1572, quando milhares de calvinistas foram massacrados, num dos episódios mais sangrentos que a História registra. Pegos de surpresa com ataques planejados pela família real e mediante o beneplácito da Igreja Católica, os huguenotes nada puderam fazer além de sucumbir sob as lanças e espadas do exército francês.

Do alto das torres sinos repicavam, nas ruas formavam-se procissões alegradas por cânticos de louvor em agradecimento a Deus pelos extermínio dos “hereges” e pela liquidação dos “malditos”. Em Roma, os sinos também soaram, denotando o contentamento do papa pela vitória dos católicos e da Coroa francesa sobre a corrente protestante, vista como uma peste que colocava em risco a liderança exercida pelo conclave. Até uma moeda comemorativa foi cunhada, além do pontífice encarregar o artista Giorgio Vasari da pintura de um mural celebrando o ocorrido. Por ter ocorrido em 24 de agosto, dia dedicado ao santo católico Bartolomeu, o episódio ficou conhecido como Noite de São Bartolomeu.

Semente – “A Noite de São Bartolomeu evidenciou a rivalidade política dos partidos que usavam a religião como pano de fundo para encobrir outros interesses”, comenta Arthur Prado Netto, pesquisador da Oficina Cinema-História, núcleo ligado ao departamento de História da Universidade Federal da Bahia. O estopim para a carnificina teve como precedente uma série de ligações envolvendo membros da nobreza. A França vivia sob o reinado do jovem Carlos IX, mas quem dava as ordens era sua mãe – Catarina de Médicis – que julgava o filho incapaz de tomar decisões importantes. Para acalmar as hostilidades entre católicos e protestantes, a solução encontrada foi uma aliança, o casamento de sua filha, Margarida de Valois, com o protestante Henri de Navarra, um aspirante ao trono.

O imbróglio começou quando um agente católico tentou assassinar o líder huguenote Gaspard de Coligny a mando da rainha-mãe, por receio da influência que ele exercia sobre o rei. Apesar da tentativa frustrada, o episódio enfureceu os protestantes. Convencido pelos aliados de que, durante a festa de casamento, centenas de calvinistas estariam em Paris tramando uma conspiração para tirar a coroa e a vida do monarca, Carlos IX não teve dúvidas e autorizou o massacre em massa dos supostos conspiradores, inclusive de seu líder. Com a bênção e a absolvição do crime por parte do papa Gregório XIII aos católicos, os ataques continuaram, atingindo as principais cidades do país. As águas dos rios ficaram infestadas por cadáveres insepultos, e o mau cheiro se espalhou pela capital francesa por vários meses. Pela estimativa, quase 100 mil huguenotes foram mortos durante os conflitos. Historicamente, a Noite de São Bartolomeu ficou conhecida como a mais terrível entre as ações diabólicas de todos os tempos. Os sobreviventes ao massacre foram obrigados a largar os pertences e fugir, espalhando-se pela Europa.

Em nome da França, então chamada de a “filha predileta da Igreja”, a rainha jurou que, a partir daquele dia, nenhum protestante nasceria naquele solo. A “peste”, segundo a ótica católica, havia sido exterminada – contudo, o episódio foi muito mais além. A partir dali, a teologia reformada espalhou-se pelo mundo. O episódio acabou tendo reflexos diretos sobre o Brasil. Fugindo da França que ardia em perseguições, o primeiro grupo de protestantes a desembarcar em terras brasileiras foi trazido pelo aventureiro Nicolas Durant de Villegagnon em 1557, com o objetivo de fundar uma colônia para os perseguidos. Dois anos mais tarde, aportou por aqui um grupo de apóstolos com missão evangelística, formado na maioria por protestantes. Era a França Antártica, empreitada que acabou não dando certo mas entrou para a História como a primeira tentativa efetiva de evangelização no Brasil, um passo decisivo para que o país chegasse ao século 21 como a segunda maior nação evangélica do mundo.

José Donizetti Morbidelli
Jornalista e assessor de comunicação e marketing

04 novembro 2007

Os justos e a cidade

“Aí o Senhor disse a Abraão: ‘Há terríveis acusações contra Sodoma e Gomorra, e o pecado dos seus moradores é muito grave’. Abraão disse: ‘Não fiques zangado, Senhor, pois esta é a última vez que vou falar. E se houver ali só dez pessoas direitas?’ ‘Por causa desses dez, não destruirei a cidade’, Deus respondeu.” A história está narrada no capítulo 18 do livro de Gênesis. Estava decidido: se constatasse que, de fato, as cidades de Sodoma e Gomorra eram pura corrupção em todos os sentidos, como parecia, Deus não pensaria duas vezes e as destruiria. Não era possível ao Senhor ver na terra que ele havia criado um povo tão cheio de malícia, mentira e perversidade. Era preciso colocar um ponto final naquela situação, que era uma agressão constante à santidade de Deus. E quem conhecia a região, como Abraão, sabia que dificilmente aquelas duas cidades teriam qualquer chance de escapar da fúria divina. Ele sofria só de pensar na destruição daqueles povos, mas não tinha jeito. Ou tinha?Talvez, sim. Abraão lembrou-se de um dos atributos que Deus mais prezava: a justiça. Se por amor a essa justiça, o Senhor estava próximo de acabar com Sodoma e Gomorra, era possível que o mesmo zelo divino fosse a salvação para aquelas cidades. Então, o patriarca do povo hebreu começa a interpelar Deus. Com uma ousadia que beirava o abuso, desafiava os limites do Senhor – será que as vidas de cinqüenta pessoas retas de coração não valeriam mais do que a dos milhares de corruptos? Ou quarenta? Trinta? Ou mesmo dez? A cada interpelação de Abraão, Deus respondia com uma afirmação de sua misericórdia e seu amor, sempre disposto a oferecer alguma chance para o ser humano reencontrar a dignidade com a qual fora criado, e de que abrira mão.Há dois aspectos dessa passagem que merecem reflexão. O primeiro deles tem a ver com a atitude divina diante de um cenário de degradação de valores e princípios: por mais caótico que fosse o estado espiritual e ético da população de Sodoma e Gomorra, os retos de coração – mesmo que fossem uma minoria – seriam a referência de Deus. Ao garantir a Abraão que não destruiria aquelas cidades se encontrasse, pelo menos, dez pessoas justas, o Senhor estava dizendo: “Minha decisão não será tomada em função dos corruptos. As ações deles me enojam, e serão condenados por elas, seja aqui ou no dia do grande Julgamento. Mas aqueles que praticam atos de justiça em meio à corrupção estão sendo agentes de meu Reino. Para mim, este é um motivo mais do que suficiente para poupar uma cidade inteira.”Em segundo lugar, Deus revelou, em seu rápido diálogo com seu servo Abraão, ser mais otimista em relação a este mundo do que nós mesmos somos. É possível que Abraão não esperasse que o Senhor fosse tão longe – talvez parasse nas quarenta ou nas trinta pessoas direitas. Dali para a frente, seria só condenação. No entanto, Deus foi ultrapassando os limites de Abraão, que parou nos dez justos muito provavelmente porque, para seu senso humano e incompleto de justiça, esta era uma quantidade razoável, a partir da qual seria mais do que natural ver a ira divina cair sobre aqueles povos.No entanto, o Senhor estava declarando sua confiança na supremacia da justiça sobre a corrupção e o pecado. Sob a ótica celestial, a presença de cinqüenta, quarenta ou mesmo dez pessoas comprometidas com os valores do Reino já seria suficiente para transformar aquelas cidades e resgatar a dignidade original das pessoas que viviam nelas. A maldade pode contagiar um povo e levar milhões de pessoas à ruína – mas o amor e a justiça de Deus são capazes de produzir uma revolução quando sinalizados nas vidas daqueles que o temem e servem, mesmo que sejam poucos. Mesmo que seja um.Prova disto é Nínive, uma cidade próspera, com mais de 120 mil habitantes – uma metrópole para a época em que viveu o profeta Jonas. Sendo ex-capital da Assíria e um grande centro de comércio, localizado à margem do Rio Tigre e no meio do caminho entre o Oriente e o Ocidente (portanto, politicamente influente), caiu em dois erros fatais: tolerou todo tipo de corrupção e desprezou o princípio divino da justiça. Também estava condenada a se transformar em cinzas, tal como Sodoma e Gomorra. Nem mesmo havia ali cinqüenta, trinta ou dez justos cuja presença fosse capaz de poupá-la. Mas bastou que um homem de coração reto começasse a denunciar os pecados da cidade, e logo toda a população – inclusive o rei – se arrependeu amargamente de sua malícia.A revolução que mudou o destino daquelas 120 mil pessoas corruptas começou com apenas uma, e foi possível porque Jonas não transigiu. Sua mensagem era dura, difícil de ser assimilada por quem estava acomodado com o pecado, mas era exatamente o que o povo precisava ouvir. Você acha que a cidade em que você mora (Rio, São Paulo, Brasília, Vitória, interior) é um depositório de corrupção, violência, mentira, prostituição e perversidade? Acredita que ela mereça um juízo tão rigoroso quanto o de Gomorra e Sodoma? O que você faria, se tivesse o mesmo poder de Deus e visse um traficante esquartejando um jornalista com uma espada de samurai; ou um político aceitando “caixinha” para fazer vista grossa a um esquema de corrupção; ou um policial negociando drogas com alguém que vai vendê-las na porta de uma escola?Pela sua graça, manifestada em Jesus Cristo, Deus fez uma opção: a de usar seus filhos para sinalizar os valores do Reino e resgatar a dignidade. Mas isso só é possível quando estes com os quais ele conta possuem um compromisso autêntico com a justiça do Senhor e não se omitem. Mesmo que sejam em minoria, são capazes de fazer uma revolução de proporções incalculáveis. Se ver sua cidade se degradar até a destruição incomoda, lembre-se de que você é a referência de Deus no meio do povo.


Carlos Alberto Bezerra Jré médico e pastor da Comunidade da Graça.
Obs.: Tenho postado artigos de alguns irmãos aqui em meu blog, devido ao pouco tempo que estou encontrando para escrever. No mais agradeço pelos comentários e pela atenção de todos que aqui meditam. Que nosso Deus e Salvador Jesus Cristo abençoe a todos nós.Amém.