29 janeiro 2008

Profetas do óbvio

A frase passou pelo dramaturgo Nelson Rodrigues e chegou, agora, aos desafios do nosso cotidiano, nesses tempos de pouca tropa (a seara é grande, os trabalhadores são poucos) e reduzida elite – tem gente demais confundindo pregar com berrar, desconhecendo, assim, a força da suavidade em levar a Palavra de salvação como bálsamo de primeiríssima qualidade. Um escritor adaptou-a para deixá-la assim: “Só os profetas enxergam o óbvio”.


O dito exige reflexão. É instigante como Nietzsche, o filósofo alemão, a nos dizer que os amantes amam mais o amor do que a pessoa amada. Fernando Pessoa, o poeta, sabia (e dizia) que todas as cartas de amor são ridículas, o que, refletido, pode nos levar a concluir que aquele que ama não tem vergonha de ser considerado ridículo.


Ao óbvio, pois, sem temor ou vergonha. Num conto dos mais críticos, nosso Machado de Assis deu à obra o provocante título de a Igreja do Diabo, uma alegoria à decisão do chefão das forças do mal em institucionalizar uma igreja própria, com prédicas, bulas e novenas, reforçando o materialismo e abolindo sentimentos de culpa. Numa nova parábola, promoveu a metamorfose do vício em virtude. Ser soberbo, venal, adepto da luxúria e da preguiça passam a ser comportamentos tidos como nobres.


Machado descreve que a nova doutrina fascina a muita gente, mas o próprio símbolo das trevas fica surpreso ao descobrir, chocado, que muitos de seus novos seguidores praticavam, escondidos, as antigas virtudes cristãs. Tal cenário, como analisa a escritora Thaís Nicoleti de Camargo, “vale uma reflexão sobre a natureza humana, atualíssima nestes tempos em que a ética está em debate”.


Profeta, como sabemos, nunca foi adivinho. É, etimologicamente, um arauto. Foi, e pode ser, quem – sempre falando em nome de Deus – analisa conjunturas e comportamentos e lança sementes da verdade. Deixa claros padrões de justiça. Trata-se de alguém que mantém uma relação íntima, profunda, com o Altíssimo. É servo de Deus, mensageiro do Senhor.


Mas, porque o “óbvio”? Porque é impossível viver sem Deus. Óbvio. E caminhos aparentemente largos conduzem à perdição. Óbvio. Porque veredas estreitas podem levar à salvação. Óbvio. Porque o salário do pecado é a morte. Óbvio. Porque o Senhor é nossa verdade, nossa vida. Óbvio. Porque hoje se cultua o corpo, mas o perigo de se criar mofo nas almas é esquecido. Óbvio. E existem corpos sarados, na acepção do termo? Sim, óbvio. E o cultivo da alma, o regozijo, a alegria, o desfrutar pleno, é perseguido com o mesmo afinco, a mesma determinação? Contraponto óbvio.


Camus, o escritor francês, falava de um óbvio e advertia: corremos o risco de ser atacados e mortos se tivermos a ousadia de dizer publicamente que dois mais dois são quatro. Mas isso não é óbvio? Claro – mas não querem mais nem ouvir o óbvio. Sejamos, pois, mensageiros de Deus e profetas do óbvio.

Percival de Souza é escritor, jornalista e membro do Conselho Diretor da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista