08 fevereiro 2008

Entre a racionalidade e a graça

Nesta primeira década do século 21, o antagonismo entre o conhecimento secular e a religião parece coisa do passado. Hoje em dia, no mundo ocidental, quem professa fé em qualquer coisa não precisa confrontar sua crença com sistemas ideológicos – mas não foi assim no passado recente. Mesmo no século anterior, que trouxe à humanidade um progresso jamais visto em toda a civilização, a genuína fé evangélica sofreu ataques maciços de forças políticas como o comunismo e o nazismo, cujos idealizadores tinham a firme intenção de riscar do mapa o nome de Jesus Cristo. Há exatos cem anos, correntes teológicas hoje consideradas equivocadas colocavam a Igreja entre dois caminhos. De um lado, o liberalismo europeu fazia grandes estragos na espiritualidade proposta pela Bíblia Sagrada, ao sugerir que a simples vontade do homem em buscar o favor divino podia ser mais poderosa que a graça divina. Do lado de cá do Atlântico, a escola fundamentalista, proposta por teólogos norte-americanos, não teve melhor sorte ao propor uma interpretação literal, e não contextualizada, da Palavra de Deus.

Foi nesse contexto de extremismos que viveu e atuou um dos maiores teólogos da história da cristandade. O suíço Karl Barth foi um crítico contundente do saber teológico de seu tempo. Mas ele não se restringiu ao campo das idéias: teve destacada atuação no combate ao nazismo, causa em que se bateu ao lado do célebre pastor alemão Dietrich Bonhoeffer, mártir da luta contra o totalitarismo de Adolf Hitler. Para Barth, não havia antagonismo entre fé e razão, desde que os postulados básicos da fé, como a salvação pela graça e a autoridade das Escrituras, fossem observados. Agora, em 2008, a Igreja lembra os 40 anos da morte daquele que foi, para muitos, o principal teólogo do protestantismo contemporâneo.

Natural de Basiléia, uma próspera cidade suíça de fala alemã, Barth nasceu no dia 10 de maio de 1886 em um piedoso lar protestante. Filho e neto de pastores reformados, o rapaz decidiu manter a tradição religiosa da família e, em 1904, ingressou na Faculdade Teológica da Universidade de Berna, capital de seu país. O ambiente acadêmico da instituição, assim como da maioria das escolas teológicas européias do período, era dominado pela chamada teologia liberal, herança do iluminismo, cujos expoentes eram mestres do calibre de Schleiermacher, Ritschl e Troeltsch. Este pensamento religioso visava explicar o cristianismo de forma condizente com os conhecimentos da época – mesmo que determinados dogmas, muitos deles centrais para a fé, fossem solapados. Como intelectual, Barth cresceu em um período de grandes transformações. Movimentos filosóficos como o deísmo, o iluminismo e o positivismo reduziram tremendamente o papel da religião na sociedade. A Revolução Industrial inglesa encarregou-se de virar de cabeça para baixo as estruturas econômicas e sociais da época.

No âmbito científico, Charles Darwin assombrava a humanidade com sua polêmica teoria da evolução das espécies, atacando, frontalmente, o relato bíblico a respeito da criação do ser humano. Em meio a tantas conquistas e avanços, acreditava-se que o gênero humano estaria destinado a um futuro feliz e esplendoroso. Conceitos como o pecado e outras verdades bíblicas, outrora inquestionáveis, foram considerados verdadeiros entraves para o desenvolvimento deste “novo homem”.

“Cristo vivo” – Em 1909, Barth, de tendência claramente liberal, obtém sua graduação em teologia. Logo iniciou sua primeira experiência ministerial em Genebra, pastoreando uma comunidade reformada de língua alemã. Seus estudos seriam continuados em universidades européias de renome, como Tubingen e Marburg. Dois anos depois, ele assumiu o púlpito de uma igreja na pequena vila suíça de Safenwill. Neste período, filiou-se ao Movimento Socialista Cristão, assim como a seu braço político, o Partido Social Democrático. Sua atuação política foi intensa, incentivando a criação de sindicatos de trabalhadores e tomando o partido das mulheres de sua pequena igreja – operárias, na maioria. Em 1913, Barth casou-se com Nelly Hoffmann, mulher que seria sua companheira até o fim da vida.

Porém, a empatia de Karl Barth com o liberalismo teológico em voga nos ambientes teológicos europeus estava com os dias contados. Ansioso por um caminho alternativo, ele passou a dedicar muito tempo a um estudo aprofundado das Sagradas Escrituras. Debruçado sobre os escritos de líderes reformadores do século 16, como Lutero e Calvino, o teólogo da Basiléia chegou à conclusão de que era impossível ao homem chegar a Deus por seus próprios esforços. Como demonstração cabal de que a humanidade não estava destinada a um futuro de glória, em 1914 eclodiu o mais sangrento confronto já visto. Para o espanto de Barth, cerca de noventa e três professores de teologia alemães, quase todos liberais, assinaram um manifesto apoiando a opção germânica pela guerra como “uma forma de o Reino de Cristo ser implantado na terra”.


Logo após o termino da Primeira Grande Guerra, em 1919, em meio a uma sociedade em estado de choque, Barth publicaria aquele que se tornaria uma das principais referências teológicas do século. Seu Comentário aos Romanos jogou por terra a idéia da bondade inata do ser humano e do suposto valor da vontade própria na busca por Deus, conceitos então cristalizados no pensamento cristão. “Karl Barth foi fundamental ao mostrar que o papel do texto bíblico é o de revelar o Cristo vivo, aquele que é o único capaz de efetuar uma ligação entre Deus e os homens”, diz o pastor presbiteriano e professor Marcelo Smargiasse, mestre em ciências da religião e ligado à Escola Superior de Teologia do Instituto Mackenzie, em São Paulo. “Além disso, ele criticou as interpretações literais das Escrituras, mesmo sem contestar a autoridade histórica da Palavra.” Graças à sua obra, inúmeros outros teólogos, também insatisfeitos com a teologia liberal, mas que não estavam dispostos a seguir os fundamentalistas norte-americanos, reuniram-se e fundaram a revista Zwischen den Zeiten (“Entre os tempos”). Era o início da chamada neo-ortodoxia, ou simplesmente, “teologia dialética”.

Luta política – Agora reconhecido no mundo acadêmico, Barth abandona as atividades pastorais e inicia uma vitoriosa carreira como docente e teólogo. Em 1925, assume o cargo de professor na Universidade de Munster, Alemanha. Cinco anos depois, é convidado para compor o quadro de docentes da prestigiada Universidade de Bonn, ocupando a cadeira de teologia sistemática. Dali, presenciou o nascimento e o crescimento do pesadelo nazista. Em 1933, Adolf Hitler torna-se o chanceler da Alemanha e lança as bases do Terceiro Reich, o império que, segundo a propaganda oficial, deveria durar mil anos. Mais uma vez, parte expressiva da Igreja apoiou o movimento que pregava a supremacia ariana e o expansionismo, mesmo às custas do massacre de outros povos.

Consciente do paganismo e do ocultismo que dava base à ideologia nazista, Barth levanta sua voz contra o partido dos “cristãos alemães”, grupo de pastores da Igreja Evangélica da Alemanha, maior denominação protestante do país, que tinham como alvo a criação de uma igreja cristã “compatível com os ideais germânicos” – entre eles, a destruição do cristianismo histórico, a retirada da Bíblia de tudo aquilo que fosse considerado de inspiração excessivamente judaica e a construção da figura de um Jesus conquistador e ariano. Em inúmeros sermões e impressos – como a Declaração de Barmen, em co-autoria com Bonhoeffer e Martin Niemoller –, o teólogo suíço enfatizava que apenas Cristo é o Senhor absoluto da Igreja, não cabendo tal privilégio a nenhum Estado, partido ou líder. Nascia a Igreja Confessante, grupo evangélico de resistência a Hitler.

“Essa luta de Barth contra o autoritarismo político e o controle ideológico da sociedade inteira é importante até hoje, no contexto da globalização”, sustenta o teólogo e filósofo Derval Dasilio, ministro da Igreja Presbiteriana Unida. Tal postura não ficaria impune. Em 1935, Barth foi oficialmente expulso da Alemanha, tendo seus diplomas anulados e seu visto cassado em solo germânico. De volta a Suíça, Barth continuou seu trabalho de oposição ao nazismo. Usando seu prestigio, denunciou ao mundo a criminosa situação imposta pelo Terceiro Reich a minorias como judeus, ciganos e deficientes físicos. Mantendo este vivo interesse pela defesa dos direitos humanos, apoiou ainda os republicanos espanhóis contra o regime fascista imposto pelo general Franco.

Personalidade sem estereótipos, a luta política levou-o ainda a protestar contra a Guerra Fria e o totalitarismo soviético da segunda metade do século. Embora socialista, ele não podia admitir um regime de coação às liberdades individuais – sobretudo a religiosa. Ao mesmo tempo, recusava-se a participar de uma cruzada anticomunista, alegando que o ateísmo de Moscou era fruto da filosofia ocidental, calcada em enormes injustiças sociais que condenavam milhões de pessoas a uma vida de miséria.

Nos últimos anos de sua vida, Karl Barth legou à posteridade mais alguns marcos de seu brilhantismo teológico. Morto em 1968, ele deixou inacabada sua Dogmática eclesiástica, coleção de treze tomos e quatro volumes que é considerada por muitos estudiosos como a maior coleção dogmática do protestantismo, atrás apenas das Institutas de Calvino. “Se fosse possível traçar uma espécie de linha sucessória dos teólogos cristãos, eu a faria desta forma: Paulo, Agostinho, Lutero, Calvino e Barth”, enumera Carlos Alberto Fernandes Chaves, pastor anglicano e mestre em ciências da religião pelo Seminário Bíblico Latino-Americano, em San José (Costa Rica). “Seu grande legado é a teologia dialética e seu apego à Palavra de Deus”, acrescenta o pastor e professor Éber Silveira Lima, professor do Seminário Teológico de São Paulo e doutor em história pela Universidade do Estado de São Paulo. “Creio que é preciso continuar a ler Barth para que percebamos a possibilidade de um cristianismo fiel, bíblico e relevante”, encerra.
*André Tadeu de Oliveira