Escravidão e Cristianismo
Várias questões se levantam sobre os motivos por que a Igreja em geral e Paulo em particular não condenam de pronto a escravidão e nem conclamam todos os proprietários de escravos na Igreja a emancipar os seus. Uma resposta que precisa ser logo abandonada sustenta que Paulo e outros, embora provavelmente conscientes da iniqüidade moral de escravidão, recusaram-se a proibir os cristãos de praticá-la porque a sociedade como um todo estava despreparado para uma reforma e se ela acontecesse produziria uma imediata revolução e tumulto, sem falar numa guerra mortal entre senhores e escravos. A dificuldade em aceitar esta perspectiva reside no fato de que ela ignora uma distinção muito vital entre o que é possível, provável e justo, com os limites de uma pequena comunidade em formação (...). Que revolução ou guerra de escravos teriam sido produzidas por um punhado de senhores (e os proprietários cristãos de escravos não tinham muitos) que resolvessem emancipar seus escravos?
É possível explicar o silêncio da Igreja primitiva sem apelar para estas hipóteses. Em primeiro lugar, estaremos certos em dizer que a incompatibilidade essencial entre escravidão e cristianismo, tão clara para nós, não tinha, aquela época passado pela mente do povo cristão. Em segundo lugar, embora Paulo estivesse consciente de algumas objeções à instituição, várias circunstâncias se combinam para enfraquecer as forças destes argumentos e desencorajar ou retardar a adoção de reformas práticas. A expectação pela Parousia naturalmente lhe levaria a considerar a extinção da escravatura uma questão relativamente sem importância. Ademais se escravos e senhor (ou apenas o senhor) fossem cristãos, o mal inerente da instituição seria dissimulado pela conduta cristã. Se somente o escravo fosse cristão, a humildade e paciência o impediriam de agitar em busca de sua emancipação.
(...) Do ponto de vista espiritual da igreja, a distinção entre escravo e livre, assim como entre homem e mulher, judeus e gregos, não tinha validade qualquer. (...) Por outro lado, a escravidão é percebida como um mal, uma vez que Paulo aconselha um escravo que teve a possibilidade de garantir a sua emancipação a que a aproveitasse (I co 7: 21), insinua a Filemon claramente a que emancipe Onésimo ( Fi 21) e usa várias expressões metafóricas que pressupunham ou implicavam em depreciação da condição escrava ( Gl 14:1, 3, 7,-9, 24ss; 5:1 I Co 7: 15; Rm 6:6, 8:15, 21, 9:12, Ts 2:3, 3:3 ).
Paradoxalmente, a servidão, não é um grande mal, mas o escravo é encorajado a permanecer pacientemente como está (I Co 7:20-22,24 ). Paulo manda de volta o escravo convertido, Onésimo, ao senhor de quem tinha furtado e fugido, mas não diz que tinha o direito de ser emancipado ( Fi 10:19 ). (...)
Paulo aconselha aos senhores tratarem com justiça os seus escravos, mas não os ameaça, lembrando que eles tinham um senhor no céu que não manifestava nenhum prazer em estamentos sociais. Filemon foi exortado a receber Onésimo não como escravo, mas como um irmão querido. Os escravos em geral foram concitados a demonstrar uma obediência genuína e a respeitar seus senhores, não somente quando sob os olhos dos senhores, mas em sinceridade de coração, como escravos zelosos de Cristo, fazendo a Vontade de deus. Foram aconselhados a trabalhar com satisfação e não como refratários e ladrões. O crédito à doutrina cristã e a expectação pelo julgamento futuro lembrados para sancionar estes ensinos (Cl 3:22) aos cristãos foram particularmente avisados nas Epístolas Pastorais contra a tendência natural de desconsiderar a autoridade de seus senhores menos que os escravos pagãos faziam: eles deviam exercer melhor suas funções porque os beneficiários de seu trabalho eram amados irmãos em Cristo ( I Tm 6: 1-2 ). Pedro avisa aos escravos de senhores pagãos a serem submissos e respeitadores, não somente aos que eram bons, mas também aos que eram severos e perversos e lhe infligissem castigos injustamente. Eles deviam seguir exemplo do Cristo sofredor (I Pe 2:18-25 ). (...)
*Cecil Cadoux. The carly church and the world. Edinburgh, T.&T. Clark, 1955. pp. 131-135, 199.