Não são poucos os textos já produzidos que focalizam as técnicas de gerar e de formar discípulos de Cristo. Os enfoques pendulam do khrugma (proclamação) do Reino gracioso de Deus para arrependimento e conversão a Jesus, ou seja, a busca de discípulos, à didach (instrução) cristã, dirigida ora aos recém-convertidos, ora à comunidade evangélica em geral. Assim, encontramos tanto os discursos que privilegiam a anunciação cristã quanto os que enfatizam os aspectos parenéticos. É nítido, entretanto, que os ensinamentos centrados apenas no bom comportamento ficam aquém da didakhé primitiva. Reduzida ao nível dos procedimentos, o poder de transformação social da instrução é apagado e, naturalmente, o da proclamação, enfraquecido.
O Novo Testamento enumera os vícios individuais do “velho homem”: adultério, ira, jactância, bebedeira, dissensões, embriaguez, inimizades, fingimento, inveja, insensatez, murmuração, prostituição, mentira, malícia, desobediência aos pais e calúnia, entre outros, dos quais o cristão deve separar-se. As paixões carnais que lutam contra a alma deverão ser vencidas. Entre a virtude e o vício, o caminho a ser escolhido pelo filho de Deus é o da primeira. Mas a relação denunciante dessas práticas é apenas um lado da moeda parenética. Enquanto encontramos partes significativas de conselhos que são apresentados sob a perspectiva negativa, há também um grande número de valores positivos –: amor aos inimigos, oração pelos perseguidores, perdão, misericórdia, justiça, bondade, humildade, fé com obras, trabalho em grupo para o bem comum, renovação mental e espiritual etc. De acordo com a Escritura, são práticas e virtudes que devem compor o caráter do cristão.
Se as instruções – que induzem os sujeitos sociais a produzirem e alterarem a história –– forem consideradas somente a partir do que se deve evitar, o cristão “se isentará do mundo”, tenderá a fechar-se em seu universo religioso e a renunciar ao seu papel de produtor de transformação social. Quando muito, suas ações se restringirão a uma proclamação centrada ou em questões espirituais, ou em comportamentos de afastamento.
Tomemos como exemplo o amor. Se as ações concretas universais forem desconsideradas ou particularmente reinterpretadas, a educação cristã se reservará ao ensino da prática caridosa pontual, da realização de trabalhos ínfimos para mero desencargo de consciência e um amor corporativo – ou, mais restritamente, de amor entre os iguais. Essa visão de cristianismo criou santos com alto grau de insensibilidade. Fica evidente, assim, que as instruções de Cristo têm amputada a sua parte essencial.
Por sua vez, no Novo Testamento há um contínuo gradativo e crescente: o amor de Deus ao mundo, descrito em João 3.16, nos proporciona a capacidade de amar (I João 4.19) não só a Deus (Marcos 12.33), mas também aos irmãos, conforme I João 4.11, e àqueles que estão no limite das relações – e ainda aos que, odiando os cristãos, permitem que o amor extravase e atinja o seu grau máximo de realização, mencionado em Mateus 5.44.
Não se deve pensar que essas instruções estejam reduzidas à proclamação, como se o amor aos irmãos, ao próximo e aos inimigos pudesse ser limitado ao anúncio do Reino ou a algum conjunto de normas para o bom comportamento; “amar a Deus”, em tal perspectiva, seria apenas o cumprimento dessa missão. Pensar dessa maneira faz-nos ter uma fé incompleta, imperfeita e, não menos, falseada. Conseqüências ética e teologicamente funestas dessa postura é a irresponsável transferência do bem – que compete ao novo homem fazer – à direta ação divina, e a crença de que o mal em todas as esferas, contra o qual a Igreja deveria opor-se concretamente, é conseqüência da condição humana decaída, que só poderia ser tratada pelo Senhor. Em outras palavras, equivale a dizer que só a divindade pode fazer alguma coisa, seja o bem seja o mal, o que anula a verdade de que a Igreja representa deu Deus perante o mundo.
É por essas razões que não é raro encontrarmos, dentro de uma mesma comunidade cristã, como algo completamente natural, pessoas que desfilam carros importados e outros que vão e voltam a pé para suas casas distantes; gente ostentando etiquetas de grife e irmãos que só têm uma muda de roupa; famílias cobertas pelos melhores planos de saúde e pais que não têm como tratar de um filho doente. Isso sem falar no disparate de encontrar na congregação quem gaste R$ 500 em um jantar e os que dependem da generosidade alheia na forma de cestas básicas.
Nessa perspectiva, nega-se que pela instrução perpetuam-se idéias vivas cujo fim é agir sobre o mundo natural, influenciando-o a reverter seu estado de miséria, de injustiça, de diferenças sociais e de ignorância. São os bons frutos que a boa árvore deve produzir, conforme Mateus 7.17. Proclamar “Senhor” e ensinar outros a dizer o mesmo sem a legitimidade de ações bondosas com poder de transformação é construir o indivíduo cristão em fundamento pusilânime. Em outras palavras, é investimento vazio no Reino de Deus. “Pois assim como o corpo sem espírito cadáver é, assim também a fé sem obras cadáver é” (Tiago 2.17). As didakhaí de Jesus relacionam moral e ética com misericórdia, compassividade, hospitalidade, bondade, mansidão – mesmo que, no limite, o princípio da reciprocidade não seja respeitado.
Da lista de conselhos que Paulo prescreveu aos cristãos em Roma, há que se destacar dois: o primeiro, circunscrito na relação interna com a comunidade – “Tornando-vos comum com as necessidades dos santos”; e o segundo, “Perseguindo o amor ao estrangeiro” (Romanos 12.13), demonstra a necessidade da relação externa com o mundo. Assim, o discípulo completo é o que em seu lugar age segundo a totalidade das instruções, e quanto mais estiver disposto a satisfazer as exigências do discipulado, maior será a sua entrega àquele que o chamou e maior será o seu poder de proclamação. Quanto a isso, nada mais contundente do que as metáforas de ação e de presença universais: “Vós sois a luz do mundo; a cidade que jaz sobre o monte não pode ser escondida” (Mateus 5.14)
Moisés Olímpio Ferreira - Doutorando em Filologia e Língua Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, professor de Grego, Exegese do Novo Testamento e Hermenêutica